terça-feira, 22 de dezembro de 2015

a vida não erra um murro nem cansa
de ampliar seu repertório de coices

tua vó obreira da assembleia de deus
com o encosto da síndrome do pânico
teu cachorro com câncer no cu e cego
tua tia cuspindo farofa todo domingo
teu vizinho fã do george israel e do kenny g
tua cidade de esgotos na língua do sol
teu professor pedindo asilo na loja de óculos
tua prima grávida da solidão no vietnã
teu primeiro amor de mãos dadas com a morte
tua cirrose sorrindo às seis horas da noite
teu país nocauteado pelo incêndio e pelo ódio
tua voz presa dentro duma garrafa de coca-cola
teu silêncio deitado na caçamba do lixo hospitalar
tua espécie embriagada de gasolina e diesel
teu futuro mancando à beira do abismo
tua mãe mordida pelos dentes da loucura

azul, (tr)adução de Jorge Teillier


verei novos rostos
verei novos dias
serei esquecido
terei memórias
verei sair o sol quando o sol sair
verei cair a chuva quando chover
andarei sem assunto
de um lado a outro
aborrecerei a meio mundo
contando a mesma história
sentarei a escrever uma carta
que não me interessa enviar
ou a olhar os garotos
nos parquinhos do bairro

sempre chegarei ao mesmo poente
a olhar o mesmo rio
irei ver filmes bestas
abrirei os braços para abraçar o vazio
tomarei vinho se me oferecerem vinho
tomarei água se me oferecerem água
e me enganarei dizendo:
"virão novos rostos
virão novos dias"

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 para un pueblo fantasma (1978)
colapso nervoso não tem pedagogia
macaco chapado operando guindaste
querendo apenas passar rasteira
passar por cima, derrubar sal
e sangue dos nossos olhos
triturar lentamente cada ossinho
do corpo que somos por aí
quando o poema tem parte com o diabo
quando o poema tem parte com o coisa ruim
quando o poema tem parte com o sete capas
quando o poema tem parte com o bode velho
quando o poema tem parte com o capiroto
quando o poema tem parte com o capeta


deus é o primeiro a pedir
para ler

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

por exemplo, (tr)adução de canção de fernando cabrera

aquelas tardes com o rádio na calçada
aqueles dias com Marina no sol
tenho um punhado de memórias de areia
entre os dedos com areia você se vai


as tardezinhas com violetas e rosas
os limões urubuservando o galpão
estou regando o tempo com tua memória
entre os dedos com água você se vai

em um espelho com rostos velhos
havia um lugar para tuas queixas
em um caderno de capa negra
havia um ar de coisas mortas
O carinha escrevia tantas histórias sobre pó e puta que embarcava nelas, como se mastigasse a carne de quinta da vida. Entre um copo e outro de conhaque, dizia que o importante não era grana, não desejava um jabuti nem parar nas estantes da Biblioteca Nacional. Costumava repetir aos quatro ventos seu sonho fabricado como um poema nas horas de tédio e calor: voar alto num helicóptero com Aécio Neves, bebendo uísque, convidado para contar suas mentiras cheias de esparadrapo numa festinha particular, comemorando a volta de Bruna Surfistinha ao trabalho.
montar móveis
e sair galopando
Alguns gostam de poema,
Outros de pamonha.

Eu gosto dos dois
E de maconha.

David Meza trouxe cerveja

Também nunca vi as pirâmides do Egito. Minha vida sacoleja como um velho cometa pelo céu da boca. Meu pai trabalhava como taxista dia e noite, ganhava pouco. Os pais de meus amigos ganhavam ainda menos. Eu não escrevi um poema fuderoso entre as ruas de Berlim. Os devaneios são as últimas moedas que nos deixaram ou, melhor dizendo, não conseguiram roubar de nossas vísceras. Não me inspirou o canto nenhuma praia perdida e misteriosa. Eu não vi o mundo desde o alto das montanhas do Himalaia, mas vi o mundo desde o poema. Escrevo em companhia dos que atravessaram o rio do sonho para encontrarem-se com a morte, dos que disseram "o pão nosso de cada dia nos dai hoje" e não foram escutados, dos que perambulam pelo mundo com os pés ensanguentados e um par de sapatos nas mãos. Escrevo em companhia deles, que não dormiram nos jardins do Taj Mahal. Escrevo em companhia deles, para os quais o Coliseu segue sendo uma mostra de aflição e crueldade. E agora lhes digo: suas orelhas são mais fascinantes que qualquer templo grego, há mais encanto em um só de seus soluços que em todas as ruas de Paris. Em companhia deles, conservei um pouco da minha vida, e da minha morte, neste poema. Em companhia deles, também digo: também nunca vi as pirâmides do Egito, mas junto de mim os pássaros criaram uma habitação maravilhosa.
vocês nunca sentiram uma dor estranha
um pensamento imenso e mudo
engolindo alma, carne e tudo
que carregam na barriga
(até mesmo a estrela)
sem gerar nenhuma flor no lodo
nem costurar vodu nenhum na vida?